Ministério da Justiça deixa Medicina Legal em risco



A desigualdade de tratamento e a negligência do Ministério da Justiça para com os médicos especialistas em Medicina Legal ultrapassou a linha vermelha, e pode conduzir, num período inferior a 10 anos, à extinção da especialidade, caso não sejam desde já tomadas medidas urgentes, alerta o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. Atualmente cerca de 70% das vagas existentes do quadro de pessoal médico do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) estão por preencher e a audiência urgente solicitada pela Ordem dos Médicos à ministra da Justiça, a 19 de fevereiro, ainda não obteve qualquer resposta.

 

“A atividade médico-legal é essencial para o funcionamento do sistema judicial. Os médicos especialistas em Medicina Legal realizam inúmeras perícias médico-legais, procurando dar resposta a todas as questões médicas de que a justiça carece para a resolução de processos judiciais”, recorda a presidente da direção do Colégio da Especialidade de Medicina Legal da Ordem dos Médicos.

 

Sofia Frazão acrescenta que estamos a falar de situações diversas, “seja no âmbito criminal, como nos casos de agressão física e psicológica, casos de suspeita de abuso sexual, de maus tratos a menores, adolescentes ou idosos e/ou de violência doméstica, incluindo casos de suspeita de negligência, tortura ou tráfico de seres humanos, seja no âmbito da realização de perícias visando o estabelecimento de valores de incapacidade em vítimas de acidentes de viação, acidentes de trabalho ou outros sinistros, bem como em cidadãos portadores de doenças”

 

A médica realça, também, “a importância de que se reveste a competente realização de autópsias médico-legais, apurando a causa de morte que permite uma cabal investigação criminal em casos de morte violenta, de causa ignorada ou de suspeita de negligência em saúde, sendo ainda o meio de prova de que dependem decisões judiciais”. A especialidade de Medicina Legal tem também um papel fulcral em cenários envolvendo múltiplas vítimas mortais, resultantes de catástrofes naturais ou de atos de índole criminal, como sejam os emergentes ataques terroristas, entre outros.

 

Estamos perante uma atividade médica particularmente exigente do ponto de vista técnico-científico, físico e emocional. A estes profissionais afetos ao INMLCF é-lhes reconhecida a competência para a realização de todas as perícias mencionadas.

 

“A situação destes médicos neste momento é desesperante. Têm sido totalmente desrespeitados pela tutela. A progressão na carreira está estagnada há 13 anos. A carência de capital humano é gritante. As carências relativas às condições de trabalho, nas quais se incluem as infraestruturas, os espaços físicos, os recursos técnicos e a falta de material adequado para a realização das perícias solicitadas, são inaceitáveis e alarmantes. A capacidade de formação de médicos internos está cada vez mais comprometida”, reforça Miguel Guimarães, avançando que “atualmente apenas se encontram preenchidas 29% das vagas existentes do quadro de pessoal médico do INMLCF (63 em 215), com diminuição da capacidade de resposta, apesar dos médicos trabalharem com frequência para além do seu horário sem qualquer remuneração extra e o INMLCF recorrer com frequência à contratação externa de peritos em regime de avença”.

 

Números preocupantes

 

 A situação a nível nacional é muito preocupante. Existem apenas 9 assistentes graduados seniores (não existem concursos para seniores desde 2006), 5 assistentes graduados, 12 assistentes com o grau de consultor que ainda não foram promovidos à categoria de assistente graduado por motivos exclusivamente financeiros (os mais antigos desde 2011), 9 assistentes a aguardar marcação de prova pública para obtenção do grau de consultor, 7 especialistas a aguardar entrada na carreira de assistente (não foram contemplados com abertura de vagas em maio de 2019), inexistência de perspetivas de progressão na carreira, êxodo de profissionais (saída de 14 médicos especialistas nos últimos anos). A curto prazo, a formação de médicos internos de Medicina Legal, que decorre exclusivamente no INMLCF, encontra-se em sério risco. Consequentemente, e caso não sejam tomadas medidas urgentes, a especialidade de Medicina Legal extinguir-se-á num período inferior a 10 anos.

 

De referir que fora do setor público existem cerca de 55 médicos especialistas em Medicina Legal, dos quais 25 com mais de 65 anos. Recentemente o Ministério das Finanças terá autorizado a abertura de apenas 10 vagas para progressão na carreira, contrariando o pedido de 16 vagas realizado pelo INMLCF. Uma decisão incompreensível face à situação calamitosa que se vive atualmente na Medicina Legal.

“Caso não haja uma resolução célere de toda a situação relatada, para além da perda da capacidade formativa e por isso impossibilidade de dar formação a novos médicos, poderemos estar a assistir in extremis a uma extinção do sistema médico-legal público, pelo menos na sua presente forma, o que poderá significar a perda de acesso do público a perícias médico-legais isentas e gratuitas, passando esse acesso a ser condicionado a entidades privadas”, alerta o bastonário.